quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Ela sabe amar muito bem; mesmo quando tudo vai mal

Você quer uma mulher que PRECISE de você. 
E eu não preciso. 
Você pode ser a coisa mais bonita da minha vida,
 mas nunca será tudo o que existe nela.

Luciana tomou um banho mais rápido que de costume - embora precisasse lavar o cabelo e isso ocupava tempo - mas era porque queria escolher a roupa com calma, combinar os acessórios com graça e calçar os sapatos que mais se harmonizassem com aquilo que ela queria dizer sobre ela naquele momento.
Escolheu, então, uma calça skinny escura e uma tomara-que-caia floridinha, folgadinha, caidinha até o início das coxas. Depois relógio pequeno e anel grande; prendeu metade dos cabelos com fivelas; um leve batom; sapatilhas. E é claro que estava nervosa! Embora não fosse a primeira vez que agia daquela forma.

Quando Luciana abre o guarda-roupa, entulhado mas metodicamente organizado por cor e "categoria" da roupa, ela percebe que pode compor a personagem que quiser! Pode ser da classe social que quiser, passar o estado emocional que quiser, ser o "tipo" de mulher que quiser. E naquele dia, era este tipo que queria ser: uma mulher 'feminina'. No sentido mais estereotipado do termo! Porque naquele dia, no sentido menos estereotipado do termo, Luciana estava indo ter uma conversa 'de mulher para mulher'.
Ela havia procurado a ex-namorada do seu atual namorado, e estava indo se encontrar com ela.

Serem as duas da mesma altura, cor de pele, textura de cabelo, tonalidade da voz, tamanho dos dentes, era apenas o primeiro indício de que o moço gostava de repetir padrões... Mas o engraçado foi a moça chegando com o capacete de uma moto, enquanto Luciana caminhava com os seus brinquinhos balançando!

O capacete era do namorado novo da ex-namorada do atual namorado de Luciana.
Os brincos eram de Luciana mesmo.

Elas já se conheciam.
Meio de vista, meio de passagem, meio porque tinham uma amiga em comum, e meio que devem ter saído juntas uma ou duas vezes antes mesmo da moça começar a namorar o atual namorado de Luciana.
Então elas já se conheciam! Mas a teria procurado mesmo se fosse uma completa desconhecida.

Um dia Luciana colocou o nome da moça numa rede social.
Não era nenhum desejo doentio de procurar se assombrar com o passado do seu presente... Era porque ela sabia que eles haviam namorado por anos! e se alguém havia conseguido namorar por anos com aquele sujeito, era porque o problema só podia estar mesmo com Luciana, que nunca amou ninguém, que nunca foi amada por ninguém, que era insegura e não tinha autoestima nenhuma, que não conseguia se valorizar e preservar na sua vida um homem que sabia, como raríssimos, amar!
Ela nunca soube porque eles haviam terminado; porque o moço acha que o passado é um assunto proibido.

Luciana ficou olhando a foto risonha da moça na rede social. Ela parecia feliz! E estava 'em um relacionamento sério' com um rapaz que tinha uma foto muito divertida! Ela devia mesmo estar feliz...
Depois, umas duas ou três vezes, voltou a contemplar o pedaço virtual da vida do passado do seu presente. Era como se ela perguntasse "se você conseguiu, pode me dizer o que é que eu estou fazendo de errado?!"

Um dia, numa discussão, ele disse que era mentira que ela gostava de ficar sozinha.
Não retrucou. Porque era verdade que era mentira. Só nunca entendeu porque associam felicidade com compainha.
Desde a primeira paixãozinha de adolescente, ela se prometeu que nunca se anularia, nunca se maltrataria, nunca se submeteria, nunca trocaria suas escolhas e ideais em nome de amor nenhum.
E o que aconteceu é que Luciana passara a maior parte da sua vida sem amor nenhum. Além do que sentia por ela mesma.
Foi colecionando observações e reflexões ao longo da vida que lhe provavam que, apesar do preço da solidão ser muitas vezes amargo e indigesto, era um preço muito menos violento do que deixar de ser o que ela era e gostava de ser. Vai ver que Luciana era uma romântica no sentido lato da palavra: sobre o amor o que prevalecia era a sua ideologia.

Conversaram e tomaram sopa num restaurante do centro da cidade.
Com calma e afabilidade.
Nenhuma das duas acreditava no mito da 'inimizade feminina'.
Elas se trataram com a generosidade das mulheres que amam o sangue que verte dos seus úteros.
O sangue que mensalmente vertemos, nos une.
É dentro de nós que a vida é criada. É dentro de nós que ela acontece. Nós a gestamos e a alimentamos. Deus é uma mulher. Por isso nos atiram na fogueira. 

E era como Luciana desconfiava: ele tudo faria para que não sobrasse vida para Luciana, se saísse dos seus domínios.
Tudo deveria girar em torno dele.
Toda a satisfação dela deveria vir do que ele lhe oferecesse.
Que nada mais sobrasse na vida dela além da necessidade que ela sentisse da presença dele.
e não bastaria
os problemas não cessariam
as cobranças não acabariam
os defeitos não deixariam de ser apontados
A dependência mais absoluta ainda não é o suficiente para um homem que sente medo.

A moça disse "eu queria ter sido menos submissa...".

Passou, querida... passou!

Acabou para mim também.

E Luciana, então, agradeceu.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A moça que tinha o vício de se jogar de precipícios

Ela tinha menos de um metro e sessenta e cabelos despenteados que davam um ar que podia ser tanto desleixo como convicção. A voz aguda e estridente, soava sempre mais alto que necessário, e não encaixava com os traços angulosos, meio masculinos, do seu rosto. O corpo longo, esguio, como se tivesse sido uma graciosa bailarina em qualquer uma dessas vidas, terminava de compor o seu retrato, iluminado por um olhar que seria interno ou, simplesmente, distante.
Ela parecia ter vivido mais de dez anos em menos de dois: mudou de casa três vezes, saiu de um emprego quando estava prestes a ser promovida, foi tentar pagar as contas trabalhando com arte, terminou um daqueles amores que engole quem os sente, namoricou um americano vegetariano e um imberbe de dezesseis anos, passou um tempo com o peito trancado de chave tetra, e agora estava vivendo um romance recente, lento e sem grandes emoções.
Andava muito caseira nos últimos tempos... O cansaço lhe fazia desejar apenas sua casa, uma garrafa de Coca-Cola e um bom livro. Era só isso; era mais isso até do que o romance-recente-lento-e-sem-grandes-emoções.
Naquele dia havia chegado acabrunhada no trabalho e não tardou para uma dor de cabeça vir dar-lhe o ar da graça! Recebeu uma ligação do romance-recente-lento-e-sem-grandes-emoções, conversaram meia dúzia de coisinhas engraçadas, como era de costume, e ela se perguntou o que estava querendo com aquilo... Então entregou o serviço a outro e foi para casa. Havia uma festa para ir poucas horas depois, mas já na sua casa, diante da sua cama, ela refez todo o planejamento e, sem pestanejar, disse para si mesma: “mas não vou mesmo!” Até que uma amiga ligou e, com a força que só os amigos possuem de “governar” os outros, ela mudou de ideia e foi tomar banho.
Já pronta, saindo de casa, pensou:
Uma festa... Pessoas, bebidas, olhares... E começou uma improvável discussão consigo mesma sob o fato dela estar, ou não, com uma história que merecia ser 'preservada'. Acabou concluindo que aquele momento de insanidade solitária era a prova que precisava para perceber que ela não queria aquela história coisíssima nenhuma! Pois parecia que a moça estava adivinhando...
A moça tinha o vício de se jogar de precipícios, mas desde que conseguira subir do maior deles não caíra de mais nenhum. Talvez porque não tivesse encontrado nenhum que valesse à pena... Mas naquela noite, com uma mini-saia e uma blusa presa por um cordão, se deixando embalar pela música, a bebida e a libido, numa hora qualquer, sem expectativa nem preparação, cruzou com um olhar que lhe causou palpitação!

- Por que eu saio sem óculos se sou míope?!

A festa seguiu. A moça riu, bebeu, dançou. E, novamente, a mesma imagem de olhos fixos dentro dos olhos dela.
Era incontestável, ele estava a olhando.
Era incontestável, isso lhe causava palpitação.
Com alegria, deixou.

Chegou em casa por volta das dez e meia;
da manhã do dia seguinte.
Os sintomas eram todos muito claros: acontecera. Ela havia acabado de cair.
Cair de um precipício não envolve lógica, não envolve tempo, não envolve conseqüências. E uma vez tendo se jogado, ou se encontra um paraíso de águas calmas, ou um chão duro e pedregoso, onde só resta voltar machucada, pelo barranco.
Na sua relação com o vício a moça cometia um erro. Sempre o mesmo e fatal erro: ela nunca conseguia se jogar junto com a outra pessoa. Ou ficava lá de cima, por medo ou desinteresse, ou se jogava afoita, de olhos fechados, sem nem sentir se a mão do outro estava firme na sua.

Daquela história, vastas lágrimas rolaram. Até ela finalmente entender que era a única e total responsável por qualquer coisa que lhe acontecesse. Só ela poderia ser apontada pelos seus machucados. Pois era ela que se jogava e fazia porque, deliberadamente, queria. Ninguém a empurrava lá de cima; nenhuma força invisível, nenhum deus, nenhum diabo, nenhum destino ou karma. Ela simplesmente sentia uma atração irresistível por precipícios e quando topava com um, apenas deixava o corpo cair.

Mas é que de cima a vista é sempre magneticamente bonita!...
Impossível não fechar os olhos, abrir os braços e partir em queda livre.
Os precipícios são inegavelmente arrebatadores. O que importa os riscos se o exato instante em que os pés saem do chão vale qualquer dor?

Sua mais profunda esperança é que encontre um que ao final possua um rio de águas calmas, onde, talvez até sozinha, nadará. Com muita destreza. E muito tranquila