terça-feira, 11 de outubro de 2011

A moça que tinha o vício de se jogar de precipícios

Ela tinha menos de um metro e sessenta e cabelos despenteados que davam um ar que podia ser tanto desleixo como convicção. A voz aguda e estridente, soava sempre mais alto que necessário, e não encaixava com os traços angulosos, meio masculinos, do seu rosto. O corpo longo, esguio, como se tivesse sido uma graciosa bailarina em qualquer uma dessas vidas, terminava de compor o seu retrato, iluminado por um olhar que seria interno ou, simplesmente, distante.
Ela parecia ter vivido mais de dez anos em menos de dois: mudou de casa três vezes, saiu de um emprego quando estava prestes a ser promovida, foi tentar pagar as contas trabalhando com arte, terminou um daqueles amores que engole quem os sente, namoricou um americano vegetariano e um imberbe de dezesseis anos, passou um tempo com o peito trancado de chave tetra, e agora estava vivendo um romance recente, lento e sem grandes emoções.
Andava muito caseira nos últimos tempos... O cansaço lhe fazia desejar apenas sua casa, uma garrafa de Coca-Cola e um bom livro. Era só isso; era mais isso até do que o romance-recente-lento-e-sem-grandes-emoções.
Naquele dia havia chegado acabrunhada no trabalho e não tardou para uma dor de cabeça vir dar-lhe o ar da graça! Recebeu uma ligação do romance-recente-lento-e-sem-grandes-emoções, conversaram meia dúzia de coisinhas engraçadas, como era de costume, e ela se perguntou o que estava querendo com aquilo... Então entregou o serviço a outro e foi para casa. Havia uma festa para ir poucas horas depois, mas já na sua casa, diante da sua cama, ela refez todo o planejamento e, sem pestanejar, disse para si mesma: “mas não vou mesmo!” Até que uma amiga ligou e, com a força que só os amigos possuem de “governar” os outros, ela mudou de ideia e foi tomar banho.
Já pronta, saindo de casa, pensou:
Uma festa... Pessoas, bebidas, olhares... E começou uma improvável discussão consigo mesma sob o fato dela estar, ou não, com uma história que merecia ser 'preservada'. Acabou concluindo que aquele momento de insanidade solitária era a prova que precisava para perceber que ela não queria aquela história coisíssima nenhuma! Pois parecia que a moça estava adivinhando...
A moça tinha o vício de se jogar de precipícios, mas desde que conseguira subir do maior deles não caíra de mais nenhum. Talvez porque não tivesse encontrado nenhum que valesse à pena... Mas naquela noite, com uma mini-saia e uma blusa presa por um cordão, se deixando embalar pela música, a bebida e a libido, numa hora qualquer, sem expectativa nem preparação, cruzou com um olhar que lhe causou palpitação!

- Por que eu saio sem óculos se sou míope?!

A festa seguiu. A moça riu, bebeu, dançou. E, novamente, a mesma imagem de olhos fixos dentro dos olhos dela.
Era incontestável, ele estava a olhando.
Era incontestável, isso lhe causava palpitação.
Com alegria, deixou.

Chegou em casa por volta das dez e meia;
da manhã do dia seguinte.
Os sintomas eram todos muito claros: acontecera. Ela havia acabado de cair.
Cair de um precipício não envolve lógica, não envolve tempo, não envolve conseqüências. E uma vez tendo se jogado, ou se encontra um paraíso de águas calmas, ou um chão duro e pedregoso, onde só resta voltar machucada, pelo barranco.
Na sua relação com o vício a moça cometia um erro. Sempre o mesmo e fatal erro: ela nunca conseguia se jogar junto com a outra pessoa. Ou ficava lá de cima, por medo ou desinteresse, ou se jogava afoita, de olhos fechados, sem nem sentir se a mão do outro estava firme na sua.

Daquela história, vastas lágrimas rolaram. Até ela finalmente entender que era a única e total responsável por qualquer coisa que lhe acontecesse. Só ela poderia ser apontada pelos seus machucados. Pois era ela que se jogava e fazia porque, deliberadamente, queria. Ninguém a empurrava lá de cima; nenhuma força invisível, nenhum deus, nenhum diabo, nenhum destino ou karma. Ela simplesmente sentia uma atração irresistível por precipícios e quando topava com um, apenas deixava o corpo cair.

Mas é que de cima a vista é sempre magneticamente bonita!...
Impossível não fechar os olhos, abrir os braços e partir em queda livre.
Os precipícios são inegavelmente arrebatadores. O que importa os riscos se o exato instante em que os pés saem do chão vale qualquer dor?

Sua mais profunda esperança é que encontre um que ao final possua um rio de águas calmas, onde, talvez até sozinha, nadará. Com muita destreza. E muito tranquila

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